Lombok, Indonésia

Há três dias em Bali, cansada da agitação de Kuta, que já não é há tempos um paraíso perdido na Indonésia. Lojas das marcas internacionais mais famosas estão lá. Cafés, bares, restaurantes, discotecas. É como estar em qualquer cidade praiana do mundo ocidental. Em Kuta, o Oriente perdeu para o Ocidente. Algumas cerimônias Hindu percorrem as ruas de Kuta, mas parecem aprisionadas, cerceadas pelo ritmo acelerado de cidade, tráfico, ambulantes, vendedores, nativos tentando fazer dinheiro. A tradição Hindu ainda resiste, mas o estilo ocidental tomou conta de Kuta, primeiro ponto de parada de quem chega em Bali pelo aeroporto de Denpadar.

Os planos iniciais eram me instalar em algum ponto da ilha, para começar a escrever o livro. Mas Kuta e seus arredores não me apeteceram. No terceiro dia, decidi partir e explorar a ilha. Comprei um ticket de shuttle bus (carro privado para turistas) para a praia Pandbay, sem ter certeza de que iria ficar por lá. Desejei conhecer alguém no carro para me dar alguma dica, me convidar a me juntar a eles…

Na manhã seguinte, o carro veio me buscar na homestay (pousada familiar), dois surfistas australianos cinquentões, Brian e Shane, me receberam com um simpático sorriso. Super engraçados. Fazendo piada para quebrar o gelo, entrosamo-nos rapidamente. O motorista pegou mais alguns turistas e finalmente partimos! O inesperado é sempre excitante. Estava neste clima de qualquer viajante. Queria que algo me surpreendesse.

Shane me recomendou a baía de Gerupuk na ilha de Lombok, vizinha de Bali. – Onde vai ficar?, me perguntou. – Em Pandgabay, de fato, não havia o que ver por lá. É uma vila portuária de areia preta. Praia não convidativa. Pesada com mais uma mala de rodinhas que adquiri na minha passagem por Nova Iorque, cheia de papel, livros, folhetos, memórias de viagem, além da mochila-carga e outra mochila com câmera. Não estava me sentindo com muita flexibilidade para locomoções rápidas, embora estivesse ávida por aventura.

Brian, sensível a minha transparente cara de não satisfeita: – Você não quer ir conosco para Lombok?, me convidou. Não pensei duas vezes. Fiz um charme de dois segundos e prontamente disse: – Sim! Sentindo-me por dentro super feliz de ter sido salva! (Risos).Brian e Shane, cavalheiros, me ajudaram com a mala de rodinhas, sem entender direito o que uma aventureira estava fazendo com uma mala de rodinhas e mais duas mochilas.

Pegamos o ferry-boat para Lombok, transporte local, não comumente usado pelos turistas. Quatro horas prazeirosas conversando e contemplando o visual da ilha de Bali e a placidez do mar. Fomos presenteados com golfinhos saltitantes. Chegamos em Lembar, porto de Lombok, já à noite. Mais uma hora de viagem e estaríamos na vila de pescador Gerupuk. Uma aventura. Chegar à noite com desconhecidos num lugar desconhecido. Shane: – Você é corajosa. Confiar em dois estranhos… – Eu sei… acabei de me perguntar isto… Confio na minha impressão, disse.  Brian completou: – Você é destemida.

Na verdade, não fazer planos e “go with the flow” (ir com o fluxo), como Osho diz, tem sido minha forma de estar no mundo,  desde que comecei esta busca interior e espiritual no Caminho de Santiago em setembro de 2009. É uma experimentação do divino, do mistério. Deixo o Universo me conduzir para ver onde serei levada. Às vezes, vou até o limite do que o senso comum consideraria seguro. Difícil para uma controladora como eu, auditora de profissão, se libertar tanto e se permitir ir na corrente da vida.

Vila de pescador Gerupuk.

Isto não é uma crítica ao meu trabalho. A natureza do meu trabalho (auditoria) é controle. Eu já era (ou sou) controladora por natureza. Virgiana típica, sempre planejei minha vida, traçava objetivos e atingia as metas. Até minha mãe ficar doente em 2002 e a minha vida sair do meu controle. Meus planos começaram a não acontecer. Minha vida deu uma guinada e comecei a buscar a vida espiritual, para compreender o porquê de tanto sofrimento na minha família.

Hoje, percebo, quando ouso, não controlo, sigo a intuição e confio na condução do Universo, a surpresa tem sido mais do que gratificante. Aprendizado. Crescimento. Regozijamento. Pessoas que precisava encontrar. Situações que precisava vivenciar para me libertar e crescer pessoal e espiritualmente. O saldo é sempre uma tremenda alegria.

Lombok é o paraíso perdido da Indonésia. O sul da ilha com praias ainda desérticas e mar azul-turquesa. Passei duas semanas na vila de pescador Gerupuk. Uma semana com Brian e Shane e a outra com meu novo amigo-companheiro Toyang. Lá encontrei o olhar inocente do homem que vive em conexão com a terra. O turismo de massa ainda não chegou por lá. Ainda é possível estabelecer relações com os nativos não permeadas pelo dinheiro.

A ilha de Lombok é mulçumana. Mas não tive problemas por ser mulher. Fui respeitada e bem recebida. O sul da ilha, Gerupuk, é praia de surfistas e de aventureiros em busca de uma experiência mais “real”, não turística. Com pequenas ondas e baías fechadas, é o lugar ideal para aprender surf com segurança.

Minha praia favorita é Tanjung A’an de areia branca, águas mornas azul-turquesa, perfeita para caminhar e passar a tarde relaxando nas espreguiçadeiras. “Sama sama” bar, que significa na língua Indonésia “bem-vindo”, é o point. Nas noites de lua cheia, rola festa na areia até o último festeiro. Explorar outras praias com Brian e Shane foi um presente. Além da possibilidade de conhecer lugares que dificilmente iria sozinha. Desfrutando de paradisíacas paisagens, ainda vivenciei a interessante experiência – rara nos dias de hoje, onde o turismo chegou a quase todos os lugares do mundo – de ser observada com o olhar de estranhamento, de estar na pele do exótico. Na praia Batu Rujaan, os nativos não acostumados a ver estrangeiros por lá, crianças e mulheres correndo atrás de nós para ver a novidade.

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– Eles parecem meio arredios, disse Shane.

– Não. Eles estão apenas nos estranhando. Somos exóticos para eles, disse.

– É… acho que você tem razão. Sou exótico para eles, disse Shane.

– Sim. Da mesma forma que eles são exóticos para nós, nós somos exóticos para eles. Isto me remete à época de quando Colombo descobriu a América. O colonizador estranhando os “selvagens “… Tudo depende do ângulo de quem vê.

– É. Sinto-me um exótico. Bom me sentir um exótico. Você tem razão, eles não são arredios. Estão apenas nos estranhando, disse Shane.

Grata surpresa na ilha de Lombok foi a cerimônia de casamento Nyongkol. Um desfile pelas ruas ao som de tambores. Participei de três casamentos. Os noivos estão sempre sérios, mas a população se diverte com a festa, vem acompanhando a festiva procissão de casamento dançando e divertindo-se. Todos querem ver o noivo e a noiva.

Joget, a dança tradicional da ilha de Lombok, lembra muito o rebolado de nossas passistas do carnaval carioca. Não me contive. Juntei-me à festa e rebolei também! (Risos). Os nativos se divertiram com a minha participação, em ver uma turista dançando igual a eles. Expliquei que sou brasileira e por lá é normal dançar assim.

Por aqui, para alguns indonésios, eu sou “bule”, turista de pele “branca (entre aspas porque, no meu caso, me considero “bege”, sou miscigenada, meu pai é português branco e minha bisavó materna era negra). Outro dia, um holandês confirmou isto para mim: “Você não é branca (risos). Branco sou eu (risos).” Para outros, eu pareço nativo, por causa dos meus cabelos, olhos castanhos-escuros e traços faciais. “Adoro a cor da sua pele”, dizem alguns indonésios para mim. “E eu adoro a cor da sua pele”, respondi. “No Brasil, a cor de sua pele morena é sensual”, complementei,

– Você parece Indonésia, comentou Tina.

– Eu sou bonita?, me perguntou.

– Sim, lhe disse.

– E você? É bonita?

– Eheheheheh! Somos bonitas, celebrou Tina.

Tina

Às vezes, desejo ser morena cravo e canela. Lembro da música “Morena Tropicana” de Alceu Valença. Quando me pergunto a origem do meu senso de estética, lembro da minha bisavó Maria, negra, que conheci e amava (quando ela morreu, eu tinha 5 anos, ainda hoje guardo sua lembrança viva na minha memória), e na cor da morena da minha mãe. Reminiscências do cordão umbilical entre o amor materno, feminino e o meu “eu”. Desejo de fusão ao objeto amado? Amo meu pai. Tenho sua cor e traços faciais. Já sou seu espelho.

Sobre a questão da cor da pele, encontrei o texto abaixo, excertos da nota do editor da revista “Gloss” de Bali: “The brown wants to be white in a cast society and the white wants to be brown because twilight is going out of style and they at least wants to be eternally tanned. Lets trip down our bare essentials, embrace our imperfections and just see how beautiful we really are.”

Por aqui, em Lombok e Bali, suspeito de que o desejo de alguns nativos de ser branco, tenha como raiz a questão econômica. Os turistas, em sua maioria, brancos e loiros, europeus, australianos etc. trazem o dinheiro, fomentam a economia. São os chefes, o “boss “, como eles os chamam por aqui. Os nativos, indonésios de pele morena, são em sua maioria os trabalhadores, estão na posição de servir.

Nas camisetas dos garçons de um restaurante em Lombok, escrito no uniforme a palavra “friendly”. Os indonésios gostam do “boss”, gostam dos europeus, australianos etc. “Todos somos iguais”, dizem alguns nativos para mim. Eles apenas desejam que sua cultura seja respeitada, senso de proteção da própria identidade, desejam ainda que o “boss” seja “friendly “.

Para além do Bem e do Mal, não existem vilãos e vítimas nesta estória. É apenas o encontro de dois mundos diferentes, o Ocidente encontrando o Oriente. E nesse encontro, o nosso senso de proteção da própria identidade, do nosso “eu”, formado por processos psicológicos e socioculturais, tende a rejeitar o que não é espelho. Puro mecanismo de defesa para proteger a nossa identidade. No mundo que persegue a revolução espiritual, “open heart” como Dalai Lama nos ensina, nossa comunicação será pela vibração do coração, nossa linguagem será a do coração. Abriremos nosso coração para o outro, exótico, estranho aos nossos olhos condicionados que estranham o diferente. Têm medo do desconhecido. Pura ilusão. No mundo revolucionado espiritualmente, desperto, iremos acordar do mundo das aparências. Cores e formas que nos iludem, nos afastam da verdade da existência. Somos apenas um. Seres humanos conectados pelo coração.

Esta questão da cor da pele em Bali e Lombok me faz pensar na identidade miscigenada do Brasil. Como o Brasil é abençoado por ser um país miscigenado, onde a questão racial nunca chegou à desumanidade do regime do apartheid social na África do Sul e EUA, com lugares proibidos aos negros e destinados somente aos brancos. Espero que o Brasil se torne cada vez mais e mais um modelo para o mundo miscigenado, multiétnico, multicultural, que respeita e vive harmoniosamente com a diversidade étnica e cultural. Quando digo minha nacionalidade para os estrangeiros europeus e americanos: “Sou brasileira”. A reação é sempre positiva. O Brasil é o país da alegria, do carnaval, do futebol e, principalmente, o país miscigenado, multicultural, multiétnico, onde não existe preconceito e todas as “raças”, etnias, culturas convivem pacífica e harmoniosamente. Esta é a imagem do Brasil no exterior. Compartilho aqui minhas impressões, porque, como brasileiros, temos de estar conscientes de nosso importante papel no mundo em prol da paz.

Espero, com o desenvolvimento socioeconômico da Indonésia, os nativos possam, também, participar do sedutor estilo de vida dos turistas, assim como os demais brasileiros ainda excluídos do mundo dos sonhos das viagens ao redor do mundo. Espero que os bilhetes aéreos se tornem cada vez mais baratos, propiciando a todos viajar, aproximando mundos distantes da multicultural humanidade.

Não defendo uma posição contra o turismo de massa. O turismo é bom para aproximar culturas, povos diferentes. Eu apenas viajo, procurando vivenciar a cultura por dentro, tentando ir um pouco além do turista. Faço um certo tipo de turismo-antropológico. Cada vez mais vejo que somos todos iguais, a nossa matriz é a mesma. Somos seres humanos com as mesmas alegrias, medos, sonhos e tristezas. Nossos sentimentos são os mesmos. Um exemplo são certas similaridades que percebi entre a cultura e a moralidade da vila de pescador Gerupuk e as da minha família do subúrbio do Rio da Janeiro. Miriam Goldenberg, antropóloga carioca, diz que a moral da Zona Sul é muito mais elástica do que a da Zona Norte do Rio de Janeiro. Nascida e criada em Inhaúma e atual moradora da Zona Sul, concordo com a antropóloga.

De volta à vila de Gerupuk, Lombok, voltando ao Nyongkol, as roupas dos noivos são do mesmo estilo das vestimentas dos nobres na época dos reinados que datam do século VII. Somente aos nobres era permitido vestir tais peças, usadas como signos de diferenciação entre nobreza e casta inferior.

No final da procissão, os noivos sentam no altar, como rei e rainha, para a população presenciar o novo casal que se forma na comunidade. Bela e divertida cerimônia.

Noiva

Noivo

O Nyongkol é a última parte dos festejos de casamento, que podem durar até 2 ou 3 meses, dependendo do poder aquisitivo da família do noivo para arcar com as despesas.

A tradição da vila de pescador de Gerupuk é o noivo “roubar” a noiva na calada da noite da casa da família. Hoje, nos tempos de reconhecimento dos direitos da mulher, o rapaz não pode roubar a noiva sem o seu consentimento. Num passado recente, segundo os nativos, há 20 anos era assim: o rapaz roubava a menina sem lhe perguntar antes se queria se casar com ele. Hoje, se fizer isto, terá problemas com a polícia.

A menina não conta para seus pais que será “roubada” durante a noite. Somente na manhã seguinte, seus pais se dão conta que a filha não está em casa. Provavelmente, foi “roubada” para se casar. Segundo os nativos, a menina realmente não conta para os pais. Presenciei uma mãe desmaiando no Nyongkol ao ver a filha pela primeira vez após semanas.

No dia seguinte ao roubo, os pais do noivo vão à casa dos pais da noiva conversar sobre o casamento e acertar o dinheiro para a cerimônia. Segundo os nativos, não existe dote. Os pais do noivo pagam somente pelas cerimônias e vestimentas da noiva. A família da noiva concordando com o casamento, o casal pode fazer sexo e as cerimônias são iniciadas.

O primeiro festejo é um jantar na casa dos pais do noivo aberto à toda comunidade. Todos estão convidados a celebrar este momento especial na vida dos moradores de Gerupuk. A comunidade traz comida, açúcar, cigarro de presente para os noivos. A comilança às vezes dura mais de um dia. Nos dias que se seguem, pode ser oferecida música, se a família do noivo tiver poder aquisitivo para contratar a banda local. Os músicos começam a tocar na casa do noivo e, às vezes, saem pelas ruas até a casa da família da noiva. Tocam lá alguns minutos e voltam para a casa do noivo. A comunidade segue atrás celebrando. A cerimônia de casamento é uma grande festa na comunidade.

Como mulçumanos, a cerimônia religiosa, a troca de anéis e o juramento, é realizado na mesquita antes do Nyongkol.

Não tive oportunidade de conversar com os noivos, mas os nativos dizem que a noiva está triste, porque é uma grande mudança em sua vida. Sai da casa dos pais e passa a conviver, da noite para o dia, com outra família, outros hábitos, novos papéis a desempenhar. Não é mais a filha, mas a esposa. Sente, também, falta dos pais. Durante todo o processo, de 2 a 3 meses, a noiva não pode ir à casa dos pais. Além disto, especialmente na tradicional vila de Gerupuk, é o momento da primeira relação sexual da menina. Grande choque. Grande mudança. Mas dizem que depois da cerimônia fica tudo bem. A noiva pode visitar os pais e fica bem.

O namoro é escondido na vila de Gerupuk. Os pais não podem saber que a filha está namorando, senão querem logo casar o novo casal de pombinhos. Vi alguns casais de adolescentes namorando escondido nas praias desertas atrás das pedras.

Eu me diverti muito no Nyongkol. Foi pura alegria seguir a procissão pelas ruas de Gerupuk. Dancei muito. Rebolei muito também (risos).

Noivos

Depois de duas semanas em Gerupuk, fui conhecer Gili Trawangan ao noroeste de Lombok, pequena ilha conhecida como “party island”. Todas as noites há uma festa e música nos bares e restaurantes. Gili T e suas vizinhas Gili Meno e Gili Air são ótimas para snorkeling e mergulho. A poucos metros da praia, já começa a barreira de corais. Vi cinco tartarugas em Gili T em apenas uma hora de snorkeling. Após alguns dias em Gili T, decidi saciar a curiosidade e fiz o trekking de 3 dias ao vulcão Rinjani, ao norte de Lombok. Caminhada pesada, em torno de 7 horas por dia de subida íngreme. A chuva nesta época do ano tornou a caminhada ainda mais pesada. O visual da cratera do vulcão faz o corpo esquecer qualquer exercício extra. Bela e exótica paisagem aos meus olhos de quem via um vulcão ativo pela primeira vez.

Adorei minha passagem por Lombok! Rica experiência humana!

Vulcão Rinjani.

A cratera

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