Casamento sem fronteiras

Hero Aditya e Cleise Vidal. Indonésia e Brasil.

Estava descendo a rua Gautama, em Ubud, ilha de Bali, Indonésia, quando alguém diz: “Tudo bem?”. Olhei para trás, surpresa. “Como assim você sabe que eu sou brasileira!?“. No Brasil de todas as cores, formas e matizes, multiétnico, é difícil reconhecermos um brasileiro pela aparência. “Não sei… Reconheço brasileiro pelo cheiro (risos)… Acho que é o seu jeito… de andar, de olhar”, disse Cleise. “Nossa! Estou impressionada! Você é boa nisto. Eu te olhei, mas pensei que fosse estrangeira, espanhola, italiana… Sei lá. Não imaginei que fosse brasileira…“.

Nossa empatia foi imediata. Muito além das raízes nacionais, identificamo-nos pela história de vida, valores, visão de mundo. O mesmo espírito viajante. Cleise começou a rodar o mundo aos 20 anos. Morou 2 anos em Barcelona, até embarcar num navio e conhecer Hero, seu marido indonésio, nascido na ilha de Java. O que mudou o curso de sua vida.

“Minha mãe sempre me perguntava quando eu ía parar, quando eu ía construir alguma coisa… Eu sempre fui aquela que viajava e deixava os namorados. Nunca me prendi. Até conhecer o Hero… e nos apaixonarmos. Primeiros, fomos amigos. A paixão aconteceu depois. A melhor coisa é ser amigo, primeiro. Sempre falei tudo. Hero era meu confidente. Eu conversa com Hero sobre os meu ex-relacionamentos. Sobre tudo. Nunca escondi nada. Chorava. Mostrava toda a minha loucura quando ficava mal, me sentia sozinha. Ele sempre me apoiou. A melhor coisa é não esconder nada, por mais louco que possa parecer. A melhor coisa é ser quem você é. Eu sempre digo: seja quem você é. Hero, também, tinha um relacionamento. Conversávamos sobre as questões dele. Ficávamos horas conversando. Perdia as horas…

Quando meu apaixonei pelo Hero… antes de começar qualquer coisa, terminei meu relacionamento anterior. Hero fez o mesmo. Trabalhamos juntos 6 meses no navio. Éramos fotógrafos do cruzeiro. Nós nos apaixonamos. Em 3 meses, começamos a namorar. Era muito bom. Quando o navio ancorava, saímos juntos para passear. O cruzeiro fazia o percurso pela Grécia, Itália, Croácia… Acho que isto favoreceu também nosso amor. Estávamos sempre juntos. E paisagens lindas…

Nossa ideia era tentar uma vida juntos no Brasil. Desembarquei em agosto de 2010 no Brasil. Hero continuou embarcado. Nossas últimas semanas juntos foram tão intensas. Não sei… quando você sabe que irá deixar alguém… você fica mais próximo. Nossa!… Quando cheguei no Brasil, fiquei perdidinha… sem saber o que fazer. Gastei uma fortuna com telefonemas. Consegui junto à companhia a vaga para embarcar no mesmo navio de Hero. Mas Hero teve de desembarcar. Nossos planos foram por água abaixo. Gastando dinheiro com ligações, fiquei no Brasil só um mês e maio, decidi vir logo para a Indonésia.

Lembro de uma vez, Hero me ligou chorando, era 4 da madrugada. “I miss you so much. Can I ask something? Would you like to marry me someday?…” Coisa de apaixonado… (sorrisos)… Ele não sabia o que fazer… “So cute…”  Ninguém nunca, nenhum namorado, tinha falado isto antes para mim… Tão doce… (risos)… Mas ele não vai contar isto para você. Ele é muito racional para falar isto para os amigos, para as pessoas.

Cheguei aqui e nos casamos em 20 dias. Não sabia como ía contar isto para minha mãe. Um dia, Hero me fez ligar para ela e contar. Nossa… Foi difícil para meus pais aceitarem no início. Hoje, depois de 1 ano, eles veem que eu estou feliz, que encontrei o que buscava, eles aceitam melhor. Quando você não esconde nada de ninguém, quando é você mesma, sua vida fica uma maravilha.”

Em um ano de Indonésia, sem dinheiro, Hero e Cleise conseguiram levantar recursos com fotografia de casamento, propaganda e montaram a Asu Art Attack, um coletivo de três artistas: Cleise Vidal, brasileira, desenhista gráfica, fotógrafa, pintora, Hero Aditya, indonésio, fotógrafo, Fajar Kadafi, indonésio, desenhista, pintor.

Identifiquei-me com a temática do trabalho de Cleise. Suas questões existenciais. A paixão e o amor que a motivam.

“A mistura cultural sempre esteve na minha família. Sou de Foz do Iguaçu, da fronteira. Minha mãe é paraguaia. Meu pai brasileiro, de mãe francesa. Não entendi no início quando ela não aceitou meu casamento. Ela fez o mesmo?!… Casou-se com um brasileiro. Acho que o ponto é por ser tão longe… Indonésia, do outro lado do mundo. Mas agora eles estão aceitando, vendo minha vida aqui. Estou feliz. Era o que eu procurava para mim. Aqui tenho espaço para me expressar como artista. Encontrei o meu lugar.

Os outros artistas de Ubud, logo que chegamos aqui, nos apoiaram muito. Nos deram espaço para expor em suas galerias. Nos convidavam para jantar, comer com eles. Compartilhavam tudo. Eu queria poder expressar a minha arte, os meus sentimentos. Asu Art Attack aconteceu naturalmente. Foi um encontro de ideias, sentimentos… de vidas… Nossos trabalhos dialogam. Muito bom construir algo com alguém. Seguir a mesma direção. Um só caminho. Acho que assim dá certo. Estou feliz.

Existem as diferenças culturais. Às vezes, é difícil. Quando cheguei aqui, em Java, como brasileira, vesti um short, uma camiseta, Hero me perguntou: “Você vai sair assim?!”. O lugar onde mora a família de Hero, em Surabaya [cidade na ilha de Java], é mulçumana tradicional. Eu respeitei. Troquei de roupa. Mas sou brasileira. Difícil se adaptar a estes costumes. Decidimos mudar para Bali. Aqui é turístico e hindu. Posso me vestir com camiseta, com ombros de fora.

Outro ponto é o nome. Na cultura de Hero, não usam sobrenome. Os filhos não têm o sobrenome da família. São apenas nomes. Dois ou três nomes. Eu quero ter filhos e quero que meus filhos tenham o meu sobrenome. Estranho meus filhos não terem o meu nome?!… São meus filhos! Eu e Hero vamos usar o último nome de Hero como sobrenome.

Uma curiosidade sobre nossa cultura e o papel da mulher brasileira na família é a questão do sobrenome, que merece estudos. Outro dia conversando com uma inglesa que namora um português, descobri que na Inglaterra, a mulher quando casa tira, completamente, o sobrenome e coloca o do marido. É somente um sobrenome. Já tinha estranhado o fato, preenchendo formulários de imigração. “Por que não há espaço para o meu segundo sobrenome?”, me perguntava. A inglesa me esclareceu. “Meu namorado português me diz quando a gente se casar, eu tenho de manter o meu sobrenome! Eu digo para ele que na Inglaterra não é assim. Ele diz: ‘Não! Você tem de manter o sobrenome da sua família!’. Não sei… Estranho...”.

Conversando sobre isto com uma australiana que já se casou três vezes, e trocou de sobrenome três vezes, disse que gostou da ideia. “Quando eu me casei pela primeira vez, perguntei o porquê de eu ter de tirar meu sobrenome, me disseram porque era assim. Não gostei. Mas fiz. Eu me senti perdendo a minha identidade. Uma boa ideia manter o sobrenome. Gostei!“.

Isto me fez pensar no papel forte da mãe na família brasileira. Alguns estrangeiros dizem que adoram a mulher brasileira. Somos carinhosas, bonitas, mas também de personalidade forte. Dizem gostarem desse jeito brasileiro, latino-americano, apesar de, às vezes, ser difícil de lidar (risos). Somos autênticas, espontâneas. Passionais. “Deve ser porque mantemos o sobrenome“, brinquei com a inglesa e a australiana (risos). Não perdemos nossa identidade. Herança cultural de Portugal? Só conjecturas. Diferenças interculturais para serem estudadas, investigadas, comparadas.

No encontro com o outro, estrangeiro, acabamos por descobrir mais de nós mesmos. Longe de casa, no exterior, mas perto de casa, no interior.

“A língua às vezes também dificulta nossa comunicação. Quero expressar meus sentimentos e não encontro as palavras em inglês. Não sei… às vezes só na sua língua materna para conseguir expressar certos sentimentos. Inglês também não é a língua nativa de Hero. Ele fala javanês, sua língua materna, e bahasa, a língua oficial da Indonésia. Com amor,  só estando juntos, um do lado do outro, conseguimos nos compreender. Vou ensinar português para os meus filhos. Quero que eles possam falar com os avós no Brasil.

Estou lendo um livro sobre a história de um australiano que se apaixonou por uma brasileira, se casou e foi morar no Brasil. Muito interessante. O livro fala sobre os choques culturais, as dificuldades de morar em outro país, mergulhar em outra cultura, os ajustes culturais necessários a serem feitos no casamento. É preciso um real comprometimento para a relação dar certo. Isto é verdadeiro amor. Uma amiga australiana que se casou com um indonésio me emprestou. Vou te emprestar. É muito interessante. Você deveria ler.”

Para quem estiver interessado na temática, o título do livro é “Love Across Latitudes: a workbook on cross-cultural marriage“, por Janet Fraser Smith, editora AWM – Arab World Ministries, Reino Unido – UK.

“Difíceis as diferenças culturais, mas estou feliz. Com amor, entendimento, comprometimento, caminhando juntos, olhando para a mesma direção, dá certo. Isto é amor verdadeiro. Real comprometimento com o outro. Hero é meu companheiro. Dividimos tudo. Contamos tudo um para o outro. A melhor coisa é ser amigo. Eu digo isto para todo mundo: case com seu melhor amigo!! Dá certo! Amor sem amizade não é amor…”. (Conselhos de Cleise para mim…)

Faraway from home.

“Este desenho… sou eu. Sempre viajando, não párava.

Sou eu voando, me transformando…  carregando a casa, agregando novas bagagens, novas experiências… na minha casa.

A cidade aqui é Curitiba onde eu vivia antes. A cada viagem, você acrescenta novas bagagens, novas experiências, mas você carrega a casa com você… Seu passado, sua história… sempre com você.

Sua casa, sua história… é você.

Mas você acrescenta novas experiências, novas bagagens… Você se transforma.”

Desejos.

“Wishes… Estamos sempre cheios de desejos. Às vezes, é o que nos motiva a continuar. Às vezes é bom, às vezes é ruim.

O desejo me trouxe aqui, para Indonésia. Não estava procurando um amor. Aconteceu. Mas era tudo o que eu queria para a minha vida. Hero é meu amigo, parceiro. Compreende minha arte. Posso me expressar, como artista, os meus sentimentos. Era um desejo…

Eu agora quero ter filhos. Adoro crianças. São tão puras, inocentes, divertidas. ”

Eu, após esta longa jornada e transformação espiritual, que não irá findar até meu último suspirar, estamos sempre em metamorfose, não sinto mais desejo pela “falta de”, não há mais carência, não há mais demandas. Tão somente uma vontade de auto-realização, de me realizar como pessoa, o meu “eu”, a minha “alma” como ser humano em sua totalidade, feminina e masculina, ying e yang.

Respeito.

“Respeito é tudo. As palavras têm muito poder. Machucam. Fiz o desenho sem a boca, porque às vezes respeito é não falar nada. Quando era adolescente, na escola faziam piada com paraguaios, diziam que eu era ‘paraguaia’, falsificada, pobre. Diziam ‘paraguaia’ em tom de ofensa. Faziam brincadeiras de mau gosto.

Hoje não tenho vergonha de dizer que sou paraguaia. Por que ter vergonha?!  São as minhas raízes. Quando você amplia a consciência, você enxerga que estas coisas não têm nada a ver. Hoje tenho orgulho de dizer que sou paraguaia. São as minhas raizes. As raízes é você, quem você é. Eu nunca vou negar minhas raízes. Sou eu.”

A história de Cleise lembrou-me quando morava em Inhaúma e também omitia na escola meu endereço. Os outros coleguinhas faziam piadas, chacotas. Às vezes, dizia que morava em Del Castilho. Era melhor… Melhor status do que Inhaúma, a última linha do metrô, à época. Na hierarquia do status da linha do metrô, onde o bom é morar do lado de lá da linha, quanto mais perto, melhor. Na juventude, o endereço, às vezes, foi também um problema para os paqueras, namorados.

Na sociedade de consumo, onde o bairro também se tornou mercadoria de prestígio, o endereço te rotula como ser humano de menos valia. Não estou dizendo que não é bom morar perto da praia. Claro que é. Se pudesse, moraria na Vieira Souto, com uma bela vista para o mar. A questão é tão somente o significado simbólico que o endereço ganha em prejuízo do humano.

Complicado falar sobre este tema: “pré-conceito”. Às vezes, parece que estamos generalizando. Não é este o ponto. Para além da superficialidade dos estereótipos, o que existem são pessoas. Somos todos iguais. Humanos.

Desculpas.

“Às vezes, a gente dá desculpas para nós mesmos para justificar o que deu errado, em vez de assumir nossos erros, defeitos. Eu era assim…  Meu conselho, não dê desculpas. Enxergue. Assuma os próprios erros. Não aponte o dedo. Aprenda e siga em frente. Isto é vida…”

O mundo não é cruel. Nós não somos perfeitos. Cada dor, cada malentendido, é uma benção para nosso crescimento pessoal, para nossa jornada espiritual. Uma possibilidade de vermos nossas sombras. Enquanto não enxergarmos nossas próprias sombras, o mundo será uma projeção de nós mesmos, de nossos fantasmas, o mundo será cruel. Viemos aqui para evoluirmos espiritualmente, nos tornarmos seres humanos na aceitação de nossas imperfeições e fortalezas. Não só as dores, mas as alegrias fazem parte desta jornada. Na aventura espiritual, o caminho sugerido é: enxergue suas sombras, aceite suas imperfeições, aprenda com os erros, não páre, evolua, siga – mergulhe neste mistério maravilhoso que é viver – celebre, festeje!

Somos não-perfeitos. Somos frágeis e somos fortes. Somos ambos. Humanos.

Verdade.

“Nunca esconda nada. Seja sempre você mesma. Mostre a realidade. Não seja quem você não é. Assim a vida se torna uma maravilha, uma paz…

Enquanto vivermos nas projeções de nós mesmos, sombras, não descobrimos quem somos, não vivemos nossa verdade. Olhe para dentro. Descubra quem você é e viva a verdade. A verdade do seu e único “Ser”.

Todos sempre diziam que eu nunca parava, nada me prendia… até encontrar Hero. Estou ‘presa’ pelo amor (risos). Só o amor me prende. Este desenho sou eu, amarrada pelo coração (risos). Na verdade, livre! Estou feliz. 

Compartilho do sentimento de Cleise. Alguns amigos dizem o mesmo para mim. O que me prende? Só o amor para me “prender” (risos). Na verdade, me libertar. Transcender. Amor é liberdade. Quando você encontra um amor (parceiro) que realmente te entende, te enxerga, gosta de você pelo o que você é, e não pelas projeções dele em você, aí sua alma encontra um céu azul, infinito azul do mar… Liberdade!

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