Caminho de Santiago, a utopia é possível
O Caminho de Santiago foi uma grata surpresa. Saí do Brasil movida por um sentimento de busca… Não sabia ao certo o que iria encontrar. Ainda no Brasil, antes de partir, escrevi num blog que buscava, na experiência desse longo caminhar, o autoconhecimento, um encontro com o meu Ser, com o etéreo, o divino, o Bem… Não sabia ao certo como seriam esses encontros… Uma vaga ideia circundava minha mente. Imaginava que seria caminhando sozinha. Queria uma luz, um sinal, algo que me conduzisse no meu caminhar. Queria, também, encontrar o sentido da vida. O Caminho de Santiago surpreendeu-me. Deu-me todas as respostas. E, principalmente, surpreendeu-me pela forma como elas chegaram até mim.
Para falar do Caminho de Santiago, preciso, antes, voltar 5 anos no tempo e discorrer um pouco sobre a minha viagem à Amazônia. A minha perene busca sobre a dualidade essência-existência humana. Existe essência humana? O homem nasce bom? Nasce mau? Ou o homem é pura existência? Sua identidade se constrói pelo contexto social?… Inspirada no mito do bom selvagem de Rousseau, voei do Rio de Janeiro para Santarém, embarquei num barco gaiola e desci o rio Tapajós durante 9 dias, para conhecer a Amazônia Ribeirinha. Lá encontrei a pureza, senti o Bem, nos olhares e sorrisos afetuosos e gratuitos para mim do povo ribeirinho. Não tinha nada a oferecê-los… Digo, em termos materiais. Apenas a alegria de estar ali e conhecê-los. Essa generosidade e gratuidade deles me tocaram. Nesse encontro, pude vivenciar que a humanidade transcende a cultura, o meio social. Não consegui respostas para o dilema essência ou existência humana, mas retornei para a casa com a certeza de que o homem não é só mau, mas também é bom. De volta ao Rio de Janeiro, deprimi. Foi difícil à readaptação aos jogos de interesse, competitividade e individualidade da sociedade capitalista.
Imbuída também de semelhante sentimento, voei do Rio de Janeiro para Espanha. Só que, dessa vez, queria encontrar o Bem através de uma experiência transcendente, imaterial, por meio de uma conexão direta entre mim e o divino, sem intermediários. Por isso, saí do Brasil com a ideia fixa de caminhar sozinha. Logo na primeira noite, chegando em Roncesvalles, onde iniciei o caminho, na fronteira com a França, senti-me só, por não conseguir me comunicar. A maioria dos peregrinos falava inglês e eu, apenas, espanhol. Na manhã seguinte, encontrei duas brasileiras. Senti-me amparada. Bom encontrar alguém familiar, que fala a mesma língua, numa terra estrangeira. Além disso, a segurança que as duas me transmitiram (faziam o caminho pela segunda vez) revigorou minha confiança para iniciar minha longa jornada. Caminhamos juntas os primeiros 11 km dos 840 km de Roncesvalles a Fisterra.
E, assim, aconteceu nas próximas três semanas. Caminhei com espanhóis, portugueses, sul-coreanos, suíços e um americano. Os encontros com meus companheiros de jornada foram muito significativos para mim. Sou daquelas pessoas que costumam seguir os planos que traçam para si. Em função da magia desses encontros, posterguei minha intenção de caminhar sozinha. A atmosfera peregrina de fraternidade me seduziu e encantou.
A atenção, a preocupação e o carinho gratuitos de pessoas que nem me conheciam, não sabiam a minha origem social, não tinham outros interesses por mim a não ser o fato de eu ser uma pessoa, me tocaram. A lógica que permeia as relações sociais nos grandes centros urbanos da sociedade capitalista de que você vale pelo o que você tem, pelo status e posição social, não se colocou na minha vivência no Caminho de Santiago. Lá, as relações se alicerçavam no Ser e não no Ter.
Pessoas de várias partes do mundo, de nacionalidades, culturas e línguas diferentes, unidas por um único laço universal: a humanidade. Unidas pelo sentimento de que somos únicos, iguais mesmo com nossas diversidades socioculturais. Somos humanos. E essa identidade é universal e perene no tempo. E é com base nela, na força de sua Verdade contundente, que o pacto social do Caminho de Santiago fundado na fraternidade e solidariedade se alicerça, ultrapassando as fronteiras simbólicas da divisão física e política em países.
Outra peculiaridade da micro-sociedade do Caminho de Santiago é a mitigação do poder do dinheiro. Não é necessário ser rico para fazer o caminho. Durante todo o caminho, há albergues públicos ou paroquiais, que são, em sua maior parte, à base de doação. O peregrino contribui com o que pode. Isso permite que pessoas de diferentes classes sociais façam o caminho. Há também a opção de hospedagem em albergues privados ou hotéis. Eu preferia ficar em albergues paroquiais e públicos, em virtude da atmosfera comunitária. Todos compartilhando, harmoniosamente, o mesmo espaço, partilhando a comida, comendo juntos. O que traduz o autêntico clima peregrino de fraternidade, solidariedade e igualdade.
Também não se estabelece na micro-sociedade peregrina a lógica da diferenciação social discutida por Baudrillard em “A Sociedade de Consumo”, na qual as pessoas são diferenciadas, nos centros urbanos, pelos acessórios e roupas caras de marcas exclusivas que usam – que concedem status e indicam a classe social. Os signos de prestígio, poder e dinheiro não se colocam na sociabilidade do Caminho de Santiago. Como o peregrino carrega consigo todos os seus pertences (roupas, produtos de higiene etc.), põe-se só o necessário na mochila para fazer o trajeto com conforto e segurança. O peregrino repete a mesma roupa todos os dias. As roupas são funcionais. A vestimenta peregrina é escolhida pelo seu valor de uso (é resistente? confortável?) e não pelo valor simbólico dos bens de prestígio social. Desse modo, as relações interpessoais não são mediadas pela pertença de produtos de luxo e exclusivos (signos de prestígio social), propiciando laços sociais mais genuínos, sem jogos de interesses, alicerçados no sentimento de humanidade.
Os laços sociais que se formam no Caminho de Santiago mostram-nos que um novo pacto social fundado em laços sólidos com o outro, com o ser humano, alicerçado na humanidade, é possível. Depois de minha vivência no Caminho de Santiago, tenho a certeza de que a utopia é possível. A paz brilhará no mundo. A sociedade do futuro calcada no ideal de justiça e não-violência não é um sonho. Está em construção. Dessa vez, voltei para a casa feliz e com as esperanças renovadas!
Ainda não tenho a resposta se o homem é bom ou mau em sua essência ou se é produto do meio social. Apenas sei (e na verdade é o que importa) que o homem pode ser bom, pode escolher o caminho do Bem: amar e respeitar o outro pelo simples fato de o outro ser um ser humano… Foi assim que o Caminho de Santiago me surpreendeu. Eu vivi minha experiência transcendental no encontro com o outro de carne e osso… Outro que não me conhecia, não sabia nada de mim, mas foi cortês, atencioso comigo. Cuidou de mim, apenas porque eu sou uma pessoa. E, através desses encontros despretensiosos e, ao mesmo tempo, repletos de amorosidade, eu encontrei e senti Deus. Senti o amor da humanidade.
Descobri, também, o sentido da vida. A razão da existência. O que dá significado à vida são as pessoas que cruzam nossos caminhos e temos a felicidade de compartilhar esta experiência única e fascinante que é viver…
Que bom que eu deixei o etéreo me conduzir e, através de seus sinais, guiar meus passos ao encontro dos meus companheiros de jornada, meus amigos peregrinos, e, na magia desses encontros, vivenciar a transcendência divina e resgatar a utopia dentro de mim. Grata surpresa!
*Michelle Glória é fotógrafa e mestra em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social.
Texto publicado na Revista Verbo 21:
Fotos dos peregrinos, meus companheiros de jornada:
http://www.flickr.com/photos/michellegloria/sets/72157622779335717/
Michelle Glória.
Prima, sou uma atenta leitora dos teus “percursos” e comungo da mesma opinião, embora pouco ou nada tenha viajado, mas o significado que damos à vida é o que tu erelatas, o texto que de seguida eu transcrevo: “O que dá significado à vida são as pessoas que cruzam nossos caminhos e temos a felicidade de compartilhar esta experiência única e fascinante que é viver…”